segunda-feira, 29 de outubro de 2018

RESISTÊNCIA (Por Ernesto Xavier)

Hoje meu nome é Resistência.

Sinto por Zumbi, que foi perseguido e morto por resistir à escravidão. 

Sinto por Dandara, tão importante quanto ele, mas ignorada pela história oficial, já que era mulher e negra. 

Sinto por Herzog, torturado e morto na ditadura militar. 

Sinto pelos milhões de índios assassinados e tirados de suas terras desde Cabral.

Sinto por cada LGBT espancado, morto ou ofendido apenas por serem quem são. 

Sinto também pelos iludidos, pois estes sentem o medo daquilo que desconhecem e perderam (ou talvez nunca tiveram) a empatia por aqueles que não têm o privilégio de estarem na elite, na branquitude, na heteronormatividade, no corpo ideal e desejado ou apenas na ilusão de serem algo que não são, mesmo que sofrendo por serem minoria, mas ainda assim, não se reconhecendo. A sociedade reconhece, filho.

A bala sempre atinge o alvo. Não tem bala perdida na terra brasilis.

Hoje sou a resistência de um povo que foi sequestrado, açoitado, forçado ao trabalho sem remuneração, estuprado, jogado na rua e despido de qualquer cidadania. Aqui estamos ainda. Tentam nos eliminar, mas resistimos. Tentam nos ignorar, mas entramos nas universidades. Tentam nos apagar, mas ocupamos as câmaras estaduais e a Federal.

Essa seguirá sendo a nossa história.

A história de quem apanha, cai e levanta. A história dos que defendem a democracia mesmo quando ela já se mostra perdida.

O ato do voto é apenas uma pequena parte do exercício democrático. Talvez o único que permanece vivo. No entanto, sua existência talvez já não importe tanto, já que a escolha de um presidente foi feita pela disseminação da mentira e do medo.

Mas que inocência me faria acreditar que apenas isso elegeu alguém? Não. Quem votou sabe. Sabe que ele recebeu dinheiro da JBS, sabe que ele é homofóbico, sabe do racismo, xenofobia, do nepotismo, do enriquecimento ilícito. Sabem. Mas a escolha vai além disso. Vai pelo caminho do ódio.

Mas que ódio é esse? Eu convivia com quem queria o meu mal e nem sabia? Talvez.

Enquanto eu não ameaçava qualquer privilégio deles, eu tinha um lugar em suas vidas. Talvez para que estivessem confortáveis e se sentissem menos ou nada preconceituosos. "Eu até tenho um amigo negro", diziam. Quando eu consegui aquela vaga na Universidade que eles julgavam ser deles, eu virei inimigo. Quando a mulher disse que não aceitaria um relacionamento abusivo, ela virou ameaça.

Quando um gay disse que não voltaria para o armário, virou ameaça. Quando uma mulher negra disse que não voltaria pra senzala simbólica a que estavam encarceradas, viraram ameaça. Quando o pobre dividiu a poltrona do avião e voltou pra visitar os parentes, virou ameaça. Quando ficou "difícil" encontrar empregada doméstica, viraram ameaça.

Assim como um golpe militar travestido de republicano foi a solução de uma elite escravocrata para frear a liberdade negra um ano após a abolição, agora tentam frear a ascensão progressista e suas múltiplas identidades que rogam por um espaço ao sol. Querem o direito de existir. Isso é democracia. É o exercício pleno da cidadania por todos os habitantes. É ter seu direito à educação de qualidade garantido. É ter direito a comer. Básico. Direito à moradia. Básico. Não é a esmola ao transeunte que vai resolver a consciência frágil de uma classe média que se vê como elite. Essa classe média que sustentou a eleição de um candidato notoriamente preconceituoso é o representante de seus anseios.

É a classe média que aplaude um jovem preso acorrentado ao poste. É a classe média que bate panela mesmo sem ter passado fome. É a classe média que fecha os olhos para o genocídio da juventude negra. É a classe média que incentiva e se orgulha da desigualdade. É a classe média que bate continência para uma polícia que mata e morre. Pretos e pobres que matam outros tão pretos e tão pobres quanto ela. É a classe média que coloca seu Iphone acima da vida. É a classe média que apoiou a ditadura e só se deu conta do que tinha feito quando seus filhos morreram nos porões do DOI-CODI. É a classe média brasileira que não quer deixar de tirar selfie com o Mickey, mas se diz patriota.

Um patriotismo de araque. Um patriotismo fascista e hipócrita. Quem ama seu país de verdade não pensa que o caminho para um compatriota, mesmo que diferente dele, seja o exílio.

Eu fui traído por aqueles que achei um dia serem meus amigos. Ganhei outros tantos na caminhada de luta e resiliência.

Hoje sou a resistência de um povo.

Hoje sou um pouco de todos que ainda acreditam no amor como forma de defender a vida. O amor não afaga apenas. Amor também é duro para dizer o que for necessário. Amor também tem cobrança. Amor também tem deveres e direitos. Por isso irei amar com todas as forças. Amarei meus companheiros de jornada para que possamos resistir. Amarei meu adversários, para que eu possa mostrar-lhes que nesse jogo político, onde a minha integridade física está ameaçada, a mão deles que diz afagar, está coberta de sangue, mas que ainda é possível limpar.

Estou triste, mas de pé.

Ninguém irá matar meus sonhos. O que trago em mim é inatingível.

Ass. Resistência


Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".















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