sexta-feira, 20 de maio de 2016

12 Romances que explicam o BRASIL (Por Thiago Muniz)

"O Brasil não é para principiantes", costumam dizer (cada vez mais). Entender as identidades que atravessam o país diz respeito, mesmo para quem vive nele, a um exercício constante de leitura, pesquisa e, sobretudo, empatia pelo lugar de memória do outro. A literatura brasileira, como todas as demais produzidas nas demais nações, é documento essencial para buscar pistas do material afetivo que nos forma. Buscamos aqui trechos de romances que, de alguma forma, possam ser coletados por antropólogos do futuro, ou desavisados do presente, e usados como provas de que, verdade, este país não é para principiantes e nunca conseguirá ser reduzido à rivalidade de uma partida de futebol. Como também não será reduzido aos trechos ou romances abaixo, lançamos apenas a faísca, tal como Debret o fez em sua famosa tela,"

O jantar, na imagem abaixo.











"Quando percebi que nem São Benedito, nem o arco-íris, nem as cruzes não faziam eu virar homem, fui me resignando e conformando: eu deveria ser sempre mulher. Mas mesmo semiconformada, eu invejava o meu irmão que era homem. E o meu irmão me invejava por eu ser mulher. Dizia que a vida das mulheres é menos sacrificada. Não necessita levantar cedo para ir trabalhar. Mulher ganha dinheiro deitada na cama. Eu ia correndo deitar na cama de minha mãe, pensando no dinheiro que ia ganhar para comprar pé-de-moleque. Depois levantava, desfazia a cama com ansiedade, procurando o dinheiro.Quando a minha mãe via a cama desfeita, dirigia-me um olhar duro, e perguntava:
– O que está fazendo, cadela?

– Estou procurando o dinheiro, o Jerônimo disse-me que as mulheres ganham dinheiro na cama, eu deitei e vou ver quanto é que ganhei. Quero comprar doces. 

Apanhava."

Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus


"Marisol, Daniel e Rodriguinho eram os únicos cocotas que andavam juntos. Insistiam em tatuar o corpo, andar com calça abaixo da cintura e cabelos encaracolados mesmo com a onda dos cocotas chegando ao fim; a coisa agora era a discoteca. Eles não entraram na guerra, preocupavam-se somente com os assaltos e para isso arrumaram vários tipos de chave de fenda, alicates, pé de cabra, serrote, facas, pistolas, para facilitar o arrombamento de casas e automóveis. Colocavam as ferramentas e armas dentro de uma capa dura de violão e saíam para os assaltos como se estivessem indo a uma festa.

O negócio deu certo porque eram brancos, não atraíam a atenção da polícia e nem causavam desconfiança nos lugares frequentados pelos ricos. Marisol não gastava o dinheiro que conseguia, fez obra na casa e em seguida comprou um carro. E foi assim até abrirem uma birosca e abandonarem o crime."

Cidade de Deus, Paulo Lins


"O tenente montou outra vez e chouteou de volta a seu grupo emoldurado de poeira. Perilo Ambrósio ficou contente em verificar que tudo resultara muito bem até o último pormenor, embora já antes estivesse seguro de que o tenente encontraria Inocêncio morto. Afinal, quando o sangrara à faca para lambuzar-se de seu sangue e assim apresentar-se ao tenente, terminara por dar-lhe mais cuteladas do que planejara, já que os braços e as mãos lhe fugiram do controle e golpeou o negro como se estivesse tendo espasmos. Melhor que haja morrido logo e não se pode negar que de um modo ou de outro deu sangue ao Brasil, pensou Perilo Ambrósio, voltando as costas e cutucando mansamente as ilhargas do cavalo para tomar de vez a estrada."

Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro


"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutandoo murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

— Ai! que preguiça!…
e não dizia mais nada."

Macunaíma, Mário de Andrade


"Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?"

A hora da estrela, Clarice Lispector


"Inconformados com a crônica medíocre da nossa trajetória para o Brasil, sem heróis nem bravatas no além-mar, nós romanceamos as vidas comuns da família, inventamos personagens e remendamos neles pedaços de narrativas, dramas e farsas da tradição oral e dos livros clássicos. Os parentes letrados e genealogistas muito contribuíram com as suas leituras. Sempre fomos uma família de mentirosos e fabuladores"

Galileia, Ronaldo Correia de Brito


"Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem."

Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis


"A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati. E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a pátria? Não teria levado toda sua vida norteado por uma ilusão, por uma ideia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa ideia nascera da amplificação da crendice dos povos greco-romanos, de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa ideia como fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições. Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os países históricos e perguntou de si para si: como um homem que vivesse quatro séculos, sendo francês, inglês, italiano, alemão, podia sentir a pátria? [...] Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista."

O triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto


"Se eram livres, por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de trabalhos? Um dia perguntou isto ao pai, com jeito, muito jeito. (...) Perguntou e a resposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre."

Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo


"O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte."

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa


"ficou sócio numa assessoria de comunicação
estou pensando seriamente em tirar o passaporte italiano e ir trabalhar
na comunidade europeia fazer qualquer coisa entende
casou-se de novo
virou pau-mandado na prefeitura as coisas que têm saído nos jornais
tudo mentira sua mãe que é jornalista sabe é tudo sacanagem é sujeira
dá nojo
separou-se e juntou-se com uma menina uns vinte e poucos anos muita
celulite não não vi mas imagino hoje são todas assim até as modelos
não vê
está construindo uma mansão em alphaville
está morando numa mansão em alphaville
e ela passando dificuldades para quitar as prestações do apartamentinho
no jabaquara
(nunca quis brigar na justiça não queria atrapalhar a relação do menino
com o pai)
e ele necessitando colocar aparelho-nos-dentes
e aprendia tanta coisa meu deus liam a veja e a folha de são paulo e
discutiam os assuntos quando pequenininho ele fazia cada pergunta e
agora era ela quem se espantava ante um mundo cada vez mais estapafúrdio
e queria engajar-se na luta pela preservação da natureza se associar
ao greenpeace e naquele dia que chegou mais cedo tendinite o
diagnóstico ele tomando banho o computador ligado entrou no quarto
para recolher a roupa espalhada ê maloqueiro e os olhos relancearam o
descanso-de-tela uma enorme bu vagina a bolsa desabou no carpete de
madeira o molho de chaves desabou no carpete de madeira seu rosto
corado emurcheceu seu coração e pensou deixar o cômodo fingir que
nada mas os pés plantados o filho cruzou a soleira assustados os olhos
o corpo escorrendo toalha à cintura a algazarra dos periquitos nos ipês
da rua a bolsa o molho de chaves espalhados no carpete de madeira o
pôster ozzy osbourne colado na porta do armário você já lanchou meu
filho mãe balbuciou eu e ela já sei vamos sair e comer uma pizza que
tal e a madrugada se dissipa os amigos do colégio do prédio amontoam-se
entorpecidos o fumo a parafina colegas conhecidos parentes
vozes velórias a cadeira à cabeceira coroa de flores saudades é um jesuscristinho
assim deitado estampa comprada num domingo de sol na
feira da praça da república dezessete anos em agosto
tão feliz tão lindo tão companheiro tão querido tão inteligente tão
amoroso
meu deus por quê que ele foi fazer isso meu deus por quê"

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato


"Aos domingos e nos dias santos, todos os escravos tinham folga certa, menos nós, os da casa-grande, que precisávamos trabalhar se os senhores assim quisessem. E sempre queriam, pois falavam que a nossa vida era bem melhor que a vida dos escravos que viviam na senzala grande, e que, portanto, não fazíamos favor algum abrindo mão de certas regalias. De fato, eu já tinha percebido que a nossa vida era melhor mesmo, apesar do pouco contato com os outros, de quem o sinhô José Carlos fazia questão de nos manter afastados."

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves



Fontes: Biblioteca Nacional, Suplemento Pernambuco, Arquivo Nacional


BIO

Thiago Muniz tem 33 anos, colunista dos blog "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para: thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.


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