quarta-feira, 10 de maio de 2017

O Brasil que não conhece o Brasil (Por Ernesto Xavier)

Preciso começar com um aviso nada agradável: Talvez você tenha ódio de classe.

Talvez. Acontece. Dá tempo de mudar. Você provavelmente nunca pensou nisso. Até acha que faz bem aos outros. Tem amigos pobres. Brincou com o filho da empregada quando era pequeno e trata ela “como se fosse da família”. Né mesmo?

Seu pai te falou que para alcançar algo de bom na vida você precisava estudar, trabalhar duro e chegaria lá. Você chegou. Parabéns! Hoje está trabalhando em uma empresa legal, estudou em uma faculdade federal concorridíssima, fala 3 idiomas e aquele MBA não foi fácil de pagar.

Sua mãe disse para ir atrás dos seus sonhos. Você foi. Fez um intercâmbio incrível. Lavou uns pratos nos EUA e se sentiu gente. Depois juntou uma grana e fez aquele mochilão pela Europa que nunca vai esquecer. Viu só? Sonhar é bom. Realizar é melhor ainda.

Agora se olha no espelho: tu tem ódio de classe.

Repita comigo: Eu tenho ódio de classe. Ó-D-I-O.

Calma. Você não é o vilão das histórias da Marvel. Você só foi criado em um ambiente onde as oportunidades estavam dadas e era uma questão de aproveitá-las. Você não estava errado em aproveitar. Tem muita gente que não aproveita e ainda reclama da vida. Escolhas. É da vida.
Acontece que esse ambiente te fez crer que tu era o cara. O seu esforço foi o grande motor para chegar lá e quem não chegou, putz, ‘tenta que consegue’. 

Foi assim que você aprendeu, né? Tipo a música da Xuxa: 

Tudo pode ser, se quiser será
O sonho sempre vem pra quem sonhar
Tudo pode ser, só basta acreditar
Tudo que tiver que ser, será

Lua de Cristal foi a trilha sonora da sua vida. Bendita geração Y do qual faço parte. Embalados por Xuxa, Angélica e um pouco de Sergio Mallandro. 

Te entendo, cara.

Para e pensa no moleque que via aquela mesa de café da manhã, no qual ela só pega uma uva, e o garoto não tinha nada em casa pra comer. O que era café da manhã? Aliás, pensa no moleque que nem tinha televisão para saber o que era o Xou da Xuxa. Malandro, o bicho pegava nas décadas de 80 e 90. Pegava mesmo. 

Já ouviu falar do Mapa da Fome?

Deve ter escutado falar disso por volta de 2014, quando a ONU anunciou que o Brasil não fazia mais parte desse tal mapa. Dizia o relatório, que o país tinha reduzido a taxa de desnutrição de 10,7% para menos de 5% desde 2003 e que a pobreza reduziu de 24,3% para 8,4% entre 2001 e 2012. 

É. Faz pensar, né? 

Provavelmente você nunca viu de perto alguém realmente com fome. Desnutrido, sabe? Alguém que realmente não come e não tem a menor esperança de quando vai realmente comer. Alguém que bebe água imprópria todos os dias. Quando tem água. Alguém que caminha quilômetros para buscar essa água suja que servirá para tudo. Quando a dignidade ganha outras conotações e talvez nem consigamos alcançar o significado com as palavras que temos à disposição em nossa língua. Sabe?
Não, você não sabe. Não tem a mínima ideia. Não entende aquele "mar" de gente pra ver a inauguração popular da transposição do Rio São Francisco.

Você pensa no pobre como algo que não deu certo. E você deu certo. Você se esforçou. A culpa não é sua.

Não funciona bem assim.

O sistema premia aqueles que estão dentro de um padrão, que obedeceram as normas desse padrão, que estão de acordo com o próprio sistema e podem representar sua imagem. Poucos são os que “vencem” estando fora desse padrão. Exceções que confirmam a regra. Saca?

Você vê o MST fechando estrada e acha que são um monte de vagabundos. Não sabe o que fazem. Não sabe como vivem. Não sabe pelo que lutam. Não sabe as questões que envolvem terras no Brasil. Não sabe o que se passa na base da pirâmide. Não enxerga que aquela talvez seja a forma mais eficiente de te chamar a atenção, mesmo que de forma negativa, mas que você saiba que eles existem. Que existe gente querendo(e precisando) plantar, vencer o poder dos latifundiários, de um Estado que o oprime ao ponto de mata-lo. Sim, matam muito por questões fundiárias no Brasil. Ou alguém aqui nunca ouviu falar em Eldorado dos Carajás? Abril de 1996. Olha a década de 90 entrando de novo na jogada!

Hoje acontece o depoimento do cara que começou esse processo de mudança na base no início do século 21. O cara que ousou subverter a “ordem natural das coisas” e que escancarou o tal do ódio de classe. 

Quem leu até aqui talvez entenda porque tem um monte de gente hoje em Curitiba para acompanhar esse depoimento. Talvez possa vislumbrar, mesmo que inicialmente, o porquê do amor desmedido de alguns por ele, que se amontoam em barracas de plástico, albergues, marquises, tudo para defender aquele que eles julgam tê-los defendido tanto. 

Você não precisa amar o MTST, nem se filiar ao PT, amar o Lula, querer a Dilma de volta. Não é disso que estou falando. Você só não consegue entender como tanta gente gosta dele e viaja milhares de quilômetros só para mostrar apoio. Você pensa no sanduíche de mortadela. O tal sanduíche que mata a fome de quem tem pressa. O tal sanduíche que será a única refeição. A mortadela que é mais barata que presunto. Sem pedigree. Falando alto, sorrindo largo, pisando firme. Pobre, mas entendendo o outro sentido de dignidade. O tal sentido que alguns sabem qual é, mas que para tantos é tão novo.

Tente entender o povo. Sinta-se parte dele. Você também é povo. Você também é massa trabalhadora. Só que está com o pescoço um pouco mais para fora da água. Só isso.

O ódio pode sair. É questão de aprendizado. Basta ter empatia.

Até lá, a luta continua.

10-05-2017

Ernesto Xavier é ator, jornalista e escritor. Autor do livro "Senti na pele".














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