terça-feira, 16 de junho de 2015

A intolerância religiosa - desafio de um país democrático e laico (Por Thiago Muniz)

Intolerância religiosa leva menina a ser apedrejada na cabeça.

O ódio e a intolerância contra religiões afro-brasileiras fizeram mais uma vítima no Rio: uma menina de 11 anos, que levou uma pedrada na cabeça. O caso ocorreu no domingo à noite, na Avenida Meriti, na Vila da Penha, Zona Norte da cidade. Por volta das 18h30, após uma festa em um barracão, um grupo de oito religiosos, vestidos com trajes brancos do Candomblé, caminhava de volta para casa. Na altura do número 3.318, dois homens em um ponto de ônibus do outro lado da via começaram a insultá-los.

- Quando viram várias pessoas vestidas de branco, começaram a insultar, gritando que a gente ia “queimar no inferno” por ser “macumbeiro” - lembra a avó, uma pesquisadora de 53 anos.

Até que, em determinado momento, um dos homens jogou uma pedra na direção ao grupo, que bateu num poste e atingiu a neta da pesquisadora, de 11 anos. 

De acordo com a avó, após a agressão e mais alguns insultos os suspeitos fugiram embarcando num ônibus.

- Ficamos todos muito nervosos, a gente não sabia o que tinha acontecido, só escutamos o estrondo. Minha neta sangrou muito, chegou a desmaiar. Não reagimos em nenhum momento, a prioridade era socorrer - lembra a avó.

O grupo retornou para o barracão, situado em Cordovil, a cerca de dez minutos do local do crime. Depois de limparem a menina, que estava com muito sangue pelo corpo, a levaram até o Posto de Assistência Médica (PAM) de Irajá, onde os médicos fizeram um curativo no ferimento. Segundo a avó, ela só não levou pontos porque estava com o ferimento muito inchado.

- Nunca tinha passado por uma situação dessa. Eu me senti impotente, não podia fazer nada. Ninguém estava prejudicando ninguém, me questiono por que fizeram isso. Acho que, independentemente do que a pessoa pratica ou no que acredita, em qualquer religião, a prioridade é tratar o ser humano como um irmão - desabafa ela, adepta do Candomblé há 33 anos, destacando que a neta está traumatizada e que iniciará um tratamento psicológico por causa do trauma.

No Facebook, a pesquisadora iniciou uma campanha contra a intolerância religiosa publicando fotos de candomblecistas segurando um cartaz com a frase “Eu visto branco, branco da paz, sou do Candomblé, e você?”. Nesta segunda-feira, a pesquisadora foi até a 38ª DP (Brás de Pina) registrar queixa. O crime foi registrado como intolerância religiosa e lesão corporal. Nesta quarta-feira, sua neta fará exame de de corpo delito.

O tratamento legal contra a intolerância religiosa ainda está comparável às ações contra o assédio moral e o assédio sexual no meio corporativo, quando as ações só eram permitidas quando houvesse provas objetivas e testemunhais da ocorrência de tais assédios.

Hoje, com relação aos assédios, há entendimentos e jurisprudência no tratamento de situações que, anteriormente vistas como subjetivas, hoje são evidências consideráveis bastante objetivas. Exemplo: O assédio moral só era considerado quando praticado pelo chefe imediato, que agia com truculência e excessiva agressividade com o (a) subordinado (a), e ainda contava com algumas testemunhas. Hoje, é sabido que o assédio moral é praticado com "sutilezas", até mais cruéis que os ataques anteriormente feitos às claras. Com relação ao assédio sexual, da mesma forma. O que antes era qualificado apenas quando ocorria uma "cantada" explícita e grosseira do chefe para com a secretária, hoje, as "sutilezas" são matérias de lides trabalhistas, por exemplo, quando a questão são as vestimentas sensuais e impróprias da "chefa" no ambiente de trabalho e o constrangimento dos subalternos. (Há outros locais mais apropriados para tanto exibicionismo).

O mesmo raciocínio se deve considerar em relação á intolerância religiosa. As sutilezas não estão sendo consideradas. Alguém já conceituou com propriedade: "A intolerância religiosa é um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças e práticas religiosas ou mesmo a quem não segue uma religião. É um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana."

Diante deste conceito amplo, poderemos, portanto, resumir como liberdade religiosa:

1) O direito de ter uma religião e crer num ser divino;

2) O direito de não ter uma religião e não crer em um ser divino;

3) O direito à neutralidade religiosa em espaços de uso comum (públicos).

Vivemos num País rico em manifestações e crenças religiosas, e muitos que, por opção, não professam nenhuma. Exemplificando: - A minha religião é A, a sua religião é B e o nosso colega do lado não tem nenhuma religião.

Entretanto, este gigante País, de dimensões continentais, Constitucionalmente Laico desde a primeira Constituição da República, ainda permite e tolera que o 3º direito (interpretado à luz do conceito de intolerância religiosa) apontado acima não seja respeitado, pois, apesar de estarmos no século XXI, vivemos ainda sob a égide do Art.5º da Constituição brasileira de 1824.

No Brasil, a Constituição outorgada de 1824 estabelecia a religião católica como sendo a religião oficial do Império, que perdurou até o início de 1890, com a chegada da República. Em seu Art. 5º lia-se: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. 

Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”.

Conforme De Plácido e Silva: "LAICO. Do latim laicus, é o mesmo que leigo, equivalendo ao sentido de secular, em oposição do de bispo, ou religioso." (SILVA, 1997, p. 45).

O termo laico remete-nos, obrigatoriamente, à ideia de neutralidade, indiferença. É também o que se compreende nos ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos, onde "A liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito importante no seu relacionamento com o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se inequivocadamente neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado.

O Estado brasileiro tornou-se desde então laico. (...) Isto significa que ele se mantém indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se (...)". (BASTOS, 1996, p. 178).

A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu artigo 19, I o seguinte:

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

Portanto, qualquer discurso contra a intolerância religiosa que não tratar da importância da neutralidade religiosa em nosso País, é hipocrisia, pois, tanto a liberdade de opinião e a inviolabilidade de consciência são asseguradas por nossa Constituição. O Estado, laico como é, não deve estabelecer preferências ou se manifestar por meio de seus órgãos.

Como bem afirma Dr. Roberto Arriada Lorea "(...) O Brasil é um país laico e a liberdade de crença da minoria, que não se vê representada por qualquer símbolo religioso, deve ser igualmente respeitada pelo Estado". (LOREA, O poder judiciário é laico. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 2005. Tendências/Debates, p.03).

Portanto, ante a bandeira contra a intolerância religiosa, é impossível aceitar que seja lícito que prédios públicos ostentem quaisquer símbolos religiosos, por contrariar o princípio da inviolabilidade de crença religiosa.

O Estado deve respeito ao ateísmo e quaisquer outras formas de crença religiosa.

O predomínio do Catolicismo no Brasil não justifica tais símbolos e não "recria" uma "religião oficial", resgatando o art. 5º da Constituição do Brasil Império.

Evito, neste momento de entrar no mérito de qualquer das outras religiões praticadas em nosso País. Não advogo aqui qual ou quais religiões o crucifixo representa. Entretanto, se tais símbolos ofendem a liberdade de crença ou descrença de uma única pessoa, já se torna matéria suficiente para justificar a retirada destes objetos religiosos dos prédios públicos ou até mesmo de empresas privadas, considerando que seus frequentadores, empregados, usuários, clientes, fornecedores, etc., não comungam da mesma crença ou descrença. E tão pouco é lícito ao Estado, ou qualquer um de seus poderes, autarquias ou assemelhados, usar erário público para patrocinar esta ou aquela festa ou manifestação religiosa, por estar estabelecendo preferências.



Vivemos num País democrático e gigante por natureza, mas, ainda imaturo no exercício da verdadeira liberdade religiosa. Nossa pátria mãe gentil, ainda convive com a intolerância religiosa sutil.

“A sua riqueza vem lá do passado, de lá do congado, eu tenho certeza”, a música do baiano Edil Pacheco, eternizada na voz de Clara Nunes, celebra a riqueza da cultura africana que foi construída no Brasil. Os cantos, os toques, a comida, danças e influências da negritude que pairam nessa terra guardam uma riqueza cultural imensurável. Historicamente, a construção da nossa identidade fez com que o Brasil se tornasse um país negro em cor, forma e conteúdo. Mesmo que essa negritude tenha sido renegada ao longo dos anos, a resistência fez com que nos tornássemos o maior país negro fora do continente africano.

O antropólogo Darcy Ribeiro afirma em sua obra O Povo Brasileiro que a população negra foi a força substancial da construção do Brasil. Segundo ele, a presença dos povos africanos fez quase tudo que aqui se fez e construiu o que hoje conhecemos como nosso país. Atitudes noticiadas recentemente mostram a falta de conhecimento da população sobre sua própria origem e, mais do que isso, o desrespeito por culturas diferentes. “Eu acredito que para a sociedade respeitar as diferenças é preciso dar a oportunidade de conhecer julgamentos. Ignorante é aquele que não se permite conhecer”, destaca Cerqueira.

“O que aconteceu essa semana foi um movimento histórico digno de ser noticiado pelos mais importantes canais de comunicação do Brasil. Pela primeira vez as comunidades de terreiros, de todos os estados do país, se mobilizaram e denunciaram os ataques e abusos motivados pela intolerância religiosa, no Ministério Público. A falta de atenção da grande mídia para nossa causa demonstra o quão fundamentalista e preconceituosa é a nossa comunicação, que enxerga os terreiros somente como exoterismo para previsões e matérias tendenciosas, mas nunca noticiam as importantes lutas que protagonizamos pela tão sonhada liberdade de culto e expressão da fé”, diz Roger Cipó, fotógrafo e candomblecista.




BIO

Thiago Muniz tem 33 anos, colunista dos blog "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para: thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.

Nenhum comentário:

Postar um comentário