quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Escola sem partido num país em retrocesso (Por Thiago Muniz)

Para interpretar o programa Escola sem Partido, não basta ler o Projeto de Lei. É necessário conhecer o que está por trás dele. Para isso, basta entrar no site do programa e em sua página do Facebook. Na rede social, eles indicam a leitura de uma “bibliografia politicamente incorreta”. Um dos livros sugeridos chama-se Professor não é educador, que faz uma dissociação entre o ato de educar, que seria responsabilidade da família, e o ato de instruir, que caberia ao professor. Ou seja, a escola deveria se limitar a transmitir conhecimento, sem discutir valores ou a realidade dos alunos. Isso é um absurdo. 

Dialogar com a realidade do aluno é uma das principais estratégias para tornar o ensino das disciplinas significativo para ele. A meta do programa é proibir a doutrinação em sala de aula. A definição do que chamam de doutrinação pode ser encontrada no site do programa, no setor “Flagrando o doutrinador”. Lá, existe uma lista de atividades em que os alunos devem ficar atentos para identificar o professor que adota essa conduta. “Você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”, diz um dos itens. É como se o objeto da disciplina pudesse ser dissociado de tudo o que acontece na comunidade, no mundo. Isso não tem fundamento algum. É fácil perceber que, por trás desse projeto, há uma concepção de escola muito deturpada. 

Em 2015, o Escola sem Partido entrou com uma ação legal contra o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova do Enem. A prova daquele ano, cujo tema de redação foi violência contra a mulher, foi acusada de promover doutrinação ideológica. Na opinião deles, a temática seria inconstitucional porque o aluno não teria um contraditório possível. Seria obrigado a criticar a violência contra as mulheres. 

O argumento central foi, conforme escrevem no site do movimento, a “inconstitucionalidade da exigência do respeito aos ‘direitos humanos’”. Esse é um exemplo do que eles querem fazer com a educação. Consideram inconstitucional uma prova que defende os direitos humanos. Isso é um escândalo.

O projeto quer estabelecer princípios para a educação nacional. A questão é que a Constituição Federal e a lei de diretrizes e bases já determinam esses princípios. Temos, então, um primeiro problema: como uma lei ordinária quer estabelecer algo que já está na Constituição? E o pior: o projeto amputa dispositivos constitucionais. Ele defende o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”. 

Na Constituição, o pluralismo de ideias também é defendido, mas ao lado do pluralismo de concepções pedagógicas, que foi intencionalmente excluído do projeto. Eles excluem justamente o elemento atribuído ao professor. Além disso, um projeto de lei tem de ser objetivo e claro para que possa ser aplicado de maneira justa. Não é o caso desse projeto. Ele proíbe a “doutrinação”, mas não define que prática é essa. 

A subjetividade é um elemento de inconstitucionalidade. No projeto, as proibições são formuladas de forma tendenciosa, misturando práticas obviamente condenáveis com as salutares. Por exemplo, no terceiro dever do professor: “O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”. É obvio que o professor não deve usar a sala de aula para fazer propaganda partidária, mas isso não quer dizer que ele não deva discutir política ou incentivar seus alunos a participar da vida pública. 

Ele não pode estimular o estudante a ir à manifestação x ou y, mas deve incentivá-lo a se manifestar democraticamente em espaços públicos. Isso é importante para a formação da cidadania, além de ser um objetivo garantido no artigo 205 da Constituição Federal.

O Escola sem Partido afirma se basear na Constituição Federal e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo artigo 12 estabelece que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas próprias convicções. Essa é uma interpretação absolutamente equivocada da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 

Ela defende o espaço privado da intervenção do Estado, mas não se refere à prestação de serviços. É claro que, dentro do espaço privado, as famílias têm o direito de educar seus filhos de acordo com suas crenças. O que não pode acontecer é que essas normas invadam o espaço público da escola. O interesse da educação é justamente formar pessoas capazes de conviver com as diferenças, com outros valores e outras culturas. 

O professor não tem como evitar atividades que possam estar em conflito com as convicções dos pais de turmas heterogêneas, com cerca de 30 alunos. Isso amarraria o professor, que ficaria incapaz de discutir qualquer assunto. 

A maneira como o projeto está redigido pode abrir espaço para a proibição de diversas discussões. Se a intenção é proibir atividades que possam ir contra a crença de uma família, é necessário que se defina que crenças são essas. Se não, tudo poderá ser reprimido. Afinal, qualquer afirmação pode ferir alguma crença.

O programa diz que, em sala de aula, o professor tem liberdade de ensinar, mas não tem liberdade de se expressar. Seus representantes afirmam que, se houvesse liberdade de expressão em sala de aula, o docente não precisaria cumprir um programa de conteúdos obrigatórios. É um dos argumentos mais estúpidos que já ouvi. Em qualquer circunstância, qualquer cidadão tem sua liberdade de expressão, que é limitada por apenas leis. 

A obrigatoriedade de conteúdos não tira do professor sua liberdade de expressão. O projeto afirma que “não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa”. Ele desqualifica o professor, tirando todos os elementos da sua prática.

O site do projeto cita uma pesquisa do Instituto Sensus que diz que 80% dos professores afirmam proferir discursos “politicamente engajados” em sala de aula. Essa é uma pesquisa com perguntas tendenciosas, cujos resultados não querem dizer nada. A interpretação das respostas também é extremamente tendenciosa e equivocada. 

Assim como o programa Escola sem Partido, essa pesquisa confunde partidarismo e política. Política é ação coletiva no espaço público, ou seja, falar de política não é fazer propaganda partidária. Professores devem falar com os alunos sobre o que está acontecendo no mundo, sobre a atuação deles no espaço comum. 

Ter um discurso politicamente engajado em sala de aula significa que esses professores estão formando para a cidadania. Estão formando alunos que se sintam capazes de mudar o mundo. Essa é a concepção de política com a qual a maioria dos professores trabalha.

O projeto está coberto de incoerências. Como diz o professor Fernando Penna: "é mal formulado, tendencioso e inconstitucional". Não serve para nada. Se tem algo de positivo no projeto é que, depois de arquivado, ele poderá mobilizar professores para uma discussão sobre os limites éticos da sua prática. Essa discussão deve envolver a sociedade como um todo, mas principalmente professores, o que não foi feito até agora. Nem ao longo da elaboração do projeto, nem ao longo de sua tramitação.

Como elaborar um projeto que discute a ética do professor, sem convidar essa categoria para discutir quais os critérios de sua própria atividade profissional?


































BIO

Thiago Muniz tem 33 anos, colunista dos blogs "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para: thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.



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